segunda-feira, 22 de março de 2010

não morras agora que estão a olhar para nós

Antero. Antero. Antero. Não me adormeças aqui na esplanada Antero, não feches os olhos, não escorregues na cadeira, olha os barquinhos no Tejo, olha as gaivotas, sempre gostaste tanto das gaivotas Antero, bebe a cerveja antes que fique morna, endireita-te, não faças essa cara, se não querias vir passear a Algés porque é que não me disseste esta manhã, porque é que não te voltaste para mim

– Este domingo não me apetece ir a Algés

e pronto, ficávamos em casa a ver crescer a planta da sala como todos os dias desde que nos reformámos, nunca discuto contigo pois não, nunca protesto, compraste aquele sofá horrível e eu calada, tiraste o retrato da minha irmã da cómoda e eu muda, não percebo o que tinhas contra a minha irmã, cada vez que ela nos visitava começavas a apertar a boca, a soprar, a mudar as coisas de sítio, não inclines a cabeça para a frente que entornas a cerveja, não empurres com o cotovelo o prato dos tremoços, não brinques comigo Antero, andas sempre sério, não te oiço uma gargalhada há séculos, não é agora diante desta gente toda que te vais pôr a torcer como um palhaço, tem algum jeito Antero, limpa o fio de cuspo que tens no queixo, não descoles a placa, não me obrigues a meter-ta para dentro da boca à força, uns dentes todos certinhos, todos brancos, quando os tiras à noite para os lavares ficas mais baixo, quando os encaixas nas gengivas até dá gosto ver-te, lembra-me um rei de coroa e tudo, cuidado com a placa que custou um dinheirão Antero, não te dobres tanto para a senhora da mesa ao lado que o marido repara, tantas gaivotas e tu desinteressado Antero, tantos barcos, o comboio de Lisboa a apitar e tudo, a outra banda, um dia lindo, se não fosse a criança aos gritos no carrinho de bebé era uma paz na esplanada Antero, se é por causa da criança que ficaste assim mudamos já de mesa, agarramos na cerveja, nos tremoços, no sumo, no pastel de nata e vamos lá para trás Antero, não fiques pálido, não dês esses soluços, não estremeças, fala comigo, eu guardo-te a placa na carteira, pronto, mas fala comigo Antero, não me importo de te ver sem placa se falares comigo, olha as pessoas a repararem em nós, olha aquela senhora a acotovelar o marido e a apontar-nos com a torrada Antero, nunca gostaste de dar nas vistas. Antero, o que se passa, se eu punha um decote, mandavas-me vestir o casaco de malha

– Que pouca vergonha é esta Maria Emília?

se ao cruzar a perna ficava com os joelhos à mostra mandavas-me baixar a bainha

– Estamos no circo ou quê Maria Emília?

se pintava o cabelo para esconder os fios grisalhos mandavas-me voltar ao salão na manhã seguinte

– Pensas que é Carnaval Maria Emília?

e agora és tu a chamar a atenção, és tu a descer pela cadeira abaixo como os miúdos, és tu com essas bolhinhas cor-de-rosa na boca, olha se eu te ralhasse, olha se eu perdesse a cabeça

– Estamos no circo ou quê Antero?

mas não perco, porto-me como deve ser, não faço cenas, só peço que te endireites, mais nada, só peço que me fales, que chupes o cuspo, não roces os dedos pelo chão que está sujo, pontas de cigarros, cascas, cocó de pombos, papéis Antero, não te sentes mal pois não, não vais morrer pois não, não morras agora que estão a olhar para nós e é uma vergonha, não posso dizer ao empregado

– O senhor desculpe mas o meu marido morreu

espera até chegarmos a casa e morre então se quiseres mas não aqui Antero, que mau aspecto, que vergonha, se queres morrer morre a sério como toda a gente, a gemer no hospital, com radiografias e análises e médicos, imagina a vizinha de cima

– O Antero morreu numa esplanada de nariz nos tremoços calculem

diz-me lá se gostavas que dissessem isso de mim, de nariz no pastel de nata calculem,

imagina que bonito Antero, um antigo chefe de secção de nariz nos tremoços, levanta-te, levanta-te imediatamente, fazes o favor de te levantar, de esperar até chegarmos a casa, há autocarros de dez em dez minutos, não custa muito, e depois tiras o casaco, desabotoas o colarinho, pões-te à vontade, que ninguém te diz nada, enquanto aqueço o jantar.


António Lobo Antunes
(n. 1942)
Livro de Crónicas
(Dom Quixote, 2000)

1 comentário: