terça-feira, 15 de junho de 2010

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Tema da semana (3)

A última chuva do prisioneiro

(pensando no escritor nigeriano Ken-Saro-Wiwa)

Lhe entrego dinheiro, prometo, tenho dinheiro fora. Não duvide: são cifras, maquias e quantidades. Tenho e tenho. E dou-lhe tudo, totalmente. Mas me traga chuva, uma porção de chuva boa, grossa e gorda. Estou doido? Por causa de querer que chova aqui, dentro da prisão? Pode ser, pode ser loucura. Mas a loucura é a única que gosta de mim. O senhor que é um inventador de realidades, me faça esse favor. Me invente, rápido, uma urgente chuvinha.

Antigamente, valia a pena ser preso. O cantinho da prisão nem era mau, comparado com o mundo que nos cabia, lá fora. Falo sério. Maioria do que aprendi foi na prisão. Ler, escrever: foi na prisão que me letrinhei. Minha vida era um ronda-ronda entre roubo e grades. Me prendiam: era um consolo cheio de sossego. Lá fora ficava o mundo, mais suas doenças, suas nauseabundâncicas. Agora, o calabouço é um lugar definhado, de não valer as penas. Esse mundo torto já entrou na prisão. A cadeia se infernou, dá vontade só de escapar. Porque aqui dentro nos roubam mais que fora. Aqui somos roubados por policia, roubados por ladrões. Já nem podemos estar livres na cadeia. Neste lugar nem os mortos estão seguros. Já perdi escolha, doutor: a prisão me mata, a cidade não me deixa viver. A feiura deste mundo já não tem dentro nem fora.

Lhe explico, nos tintins. Na minha língua materna nem há palavra para dizer cadeia. Não tínhamos nem ideia de cadeia. Foram os portugueses que trouxeram. Coitados, trouxeram cadeias de tão longe, até dava pena elas ficarem vazias. Eu explicava assim para minha mãe, primeiras vezes que fui preso.

Estou a ser preso mamã, mas é por respeito dos mezungos.

Respeito dos brancos?

Sim, mãe: é que eles, coitados, tiveram tanto trabalho...é feio a gente deixar estas cadeiras assim, sem ninguém.

Minha mãe acenava, com reserva. Ela enchia o nariz de rapé, aspirava aquilo como se a narina fosse a boca da sua alma. Depois, espirrava, soltando distraídos demónios. E me avisava:

Só eu tenho medo é do tempo...

Que tem o tempo?

É que o tempo namora com ele próprio. Só finge que gosta de nós...

Não entendo, mamã.

É que na cadeia, o tempo gosta de passear com modos de prostituta. Você pensa que ainda não lhe deu nada mas já pagou a sua toda vida.

Não se preocupa mamã. Eu venho, volto e regresso.

Ela deixava uma alegria espreitar na lágrima. Com as tais palavras eu lhe estava imitando quando ela, em minha pequeninice, me dava instrução de regresso. Mais acontecia era quando chovia. Minha mãe me acorria, me sacudia, me suspendia.

Começou a chuva filho, corre lá para fora!

Era o contrário das restantes mães que chamavam seus meninos a recolher assim que tombavam as primeiras gotas. Fosse a que hora, mal chuviscava, ela me despertava, me despia e me empurrava para fora de casa. Minha mãe acreditava que a chuva é água de lavar alma. Nunca ela deve ser desperdiçada. Disso me lembro, a chuva tilintando, eu tiritando. E, em minhas mãos, as folhas de kwangula tilo, essa plantinha que nos protege dos trovões, impedindo que o peito nos rebente. Me lembro de suas recomendações:

Vens, voltas e regressas. Ouviste?

Nem sei quantas vezes entrei, voltei e regressei para o calabouço. Minha vida foi um ciclo de porta e tranca, céu e grade. Minha mãe morreu, durante esse entra-e-sai. Recebi notícia na prisão, no meio de um domingo. Escutávamos o relato de um futebol. Os outros se mantiveram, cativos do rádio. Só eu despeguei a cabeça, levantei os olhos para o carcereiro. Pedi para sair. Não me autorizaram. Eu que fosse á capela da prisão, orasse ali por minha mãe. Mas o chefe da cadeia, sendo branco, não me podia entender. Eles se despedem dos mortos de modo diferente. Foi a única vez que fugi da cadeia, foi essa. Eu queria comparecer na cerimónia de minha velha. Lá no cemitério da família ainda me pingou uma tristeza. Falei assim:

Viu mãe? Eu disse que voltava...

E pelo pé da minha vontade retornei para a prisão. Dentro e fora, já eu era conhecido de todos, presos e guardas. Sou irmão legítimo dos que não têm família. Eles sempre me dedicaram amizades, autenticadas com provas. Me traziam revistas com fotografias de mulher branca. Eu antes me divertia com uma dessas fotografias, o corpo dessa mulher me era muito manual. Mas me cansei de imaginadelas. Ultimamente o que fazia? Punha a fotografia dessa mulher em cima do armário e lhe rezava. Faz conta era Nossa Senhora dos Qualqueres. Eu ficava assim, ajoelhado, com vontade de pedir, o pedido me vinha á boca mas eu engolia como se fosse só saliva. E fiz tanto isso que me esqueceu todos os pedidos que eu queria encomendar.

Vendi a revista aos pedaços, 500 cada foto, 1000 cada mama. Agora, deixei de pedir. Desisti. A única coisa que quero é chuva. Chover-me em cima de mim, molhar-me, charcoar-me.

Eu nasci na arrecadação da paisagem, num lugar bem desmapeado do mundo. Tudo em volta era securas, poeiras e remoinhos. Chuva era sinal dos deuses, sua escassa e rara oferta. E quando me dispunha assim, todo eu nu, todo inteiramente descalço, parecia que os divinos destinavam toda aquela água só para mim. Eu tenho essa única saudade. Que caia um muitão de chuva, até chover dentro de mim, pingar-me os tectos da cabeça, me aguar o coração e me sentir lavado das poeiras que a vida me sujou.

E assim diluviado, eu escute, entre o ruído das gotas nos telhados, a voz de minha mãe me farolando:

Você vem, volta...

E agora que estou falando, imagine, doutor, estou já sentindo em meus braços o doce roçar das folhinhas da planta que me protege do rebentar do peito, logo hoje que é véspera de eu ser sentenciado no suspenso da corda. Como se essa corda me conduzisse para onde minha mãe me espera, sentada na berma de um chuvisco. Como se esse nó de forca fosse o meu cordão desumbilical.

Me invente uma última chuvinha, doutor...

Mia Couto

in, Contos do Nascer da Terra (1997)

sábado, 3 de abril de 2010

quinta-feira, 1 de abril de 2010

segunda-feira, 29 de março de 2010

segunda-feira, 22 de março de 2010

não morras agora que estão a olhar para nós

Antero. Antero. Antero. Não me adormeças aqui na esplanada Antero, não feches os olhos, não escorregues na cadeira, olha os barquinhos no Tejo, olha as gaivotas, sempre gostaste tanto das gaivotas Antero, bebe a cerveja antes que fique morna, endireita-te, não faças essa cara, se não querias vir passear a Algés porque é que não me disseste esta manhã, porque é que não te voltaste para mim

– Este domingo não me apetece ir a Algés

e pronto, ficávamos em casa a ver crescer a planta da sala como todos os dias desde que nos reformámos, nunca discuto contigo pois não, nunca protesto, compraste aquele sofá horrível e eu calada, tiraste o retrato da minha irmã da cómoda e eu muda, não percebo o que tinhas contra a minha irmã, cada vez que ela nos visitava começavas a apertar a boca, a soprar, a mudar as coisas de sítio, não inclines a cabeça para a frente que entornas a cerveja, não empurres com o cotovelo o prato dos tremoços, não brinques comigo Antero, andas sempre sério, não te oiço uma gargalhada há séculos, não é agora diante desta gente toda que te vais pôr a torcer como um palhaço, tem algum jeito Antero, limpa o fio de cuspo que tens no queixo, não descoles a placa, não me obrigues a meter-ta para dentro da boca à força, uns dentes todos certinhos, todos brancos, quando os tiras à noite para os lavares ficas mais baixo, quando os encaixas nas gengivas até dá gosto ver-te, lembra-me um rei de coroa e tudo, cuidado com a placa que custou um dinheirão Antero, não te dobres tanto para a senhora da mesa ao lado que o marido repara, tantas gaivotas e tu desinteressado Antero, tantos barcos, o comboio de Lisboa a apitar e tudo, a outra banda, um dia lindo, se não fosse a criança aos gritos no carrinho de bebé era uma paz na esplanada Antero, se é por causa da criança que ficaste assim mudamos já de mesa, agarramos na cerveja, nos tremoços, no sumo, no pastel de nata e vamos lá para trás Antero, não fiques pálido, não dês esses soluços, não estremeças, fala comigo, eu guardo-te a placa na carteira, pronto, mas fala comigo Antero, não me importo de te ver sem placa se falares comigo, olha as pessoas a repararem em nós, olha aquela senhora a acotovelar o marido e a apontar-nos com a torrada Antero, nunca gostaste de dar nas vistas. Antero, o que se passa, se eu punha um decote, mandavas-me vestir o casaco de malha

– Que pouca vergonha é esta Maria Emília?

se ao cruzar a perna ficava com os joelhos à mostra mandavas-me baixar a bainha

– Estamos no circo ou quê Maria Emília?

se pintava o cabelo para esconder os fios grisalhos mandavas-me voltar ao salão na manhã seguinte

– Pensas que é Carnaval Maria Emília?

e agora és tu a chamar a atenção, és tu a descer pela cadeira abaixo como os miúdos, és tu com essas bolhinhas cor-de-rosa na boca, olha se eu te ralhasse, olha se eu perdesse a cabeça

– Estamos no circo ou quê Antero?

mas não perco, porto-me como deve ser, não faço cenas, só peço que te endireites, mais nada, só peço que me fales, que chupes o cuspo, não roces os dedos pelo chão que está sujo, pontas de cigarros, cascas, cocó de pombos, papéis Antero, não te sentes mal pois não, não vais morrer pois não, não morras agora que estão a olhar para nós e é uma vergonha, não posso dizer ao empregado

– O senhor desculpe mas o meu marido morreu

espera até chegarmos a casa e morre então se quiseres mas não aqui Antero, que mau aspecto, que vergonha, se queres morrer morre a sério como toda a gente, a gemer no hospital, com radiografias e análises e médicos, imagina a vizinha de cima

– O Antero morreu numa esplanada de nariz nos tremoços calculem

diz-me lá se gostavas que dissessem isso de mim, de nariz no pastel de nata calculem,

imagina que bonito Antero, um antigo chefe de secção de nariz nos tremoços, levanta-te, levanta-te imediatamente, fazes o favor de te levantar, de esperar até chegarmos a casa, há autocarros de dez em dez minutos, não custa muito, e depois tiras o casaco, desabotoas o colarinho, pões-te à vontade, que ninguém te diz nada, enquanto aqueço o jantar.


António Lobo Antunes
(n. 1942)
Livro de Crónicas
(Dom Quixote, 2000)